OS DADOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES E O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA: uma interpretação do princípio sob um olhar e ouvir fraterno

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             Sumário: 1. Os dados e o Direito;2. O Direito da Criança e do Adolescente e a Proteção Integral;2.1. A criança e o adolescente como titulares de direitos fundamentais;2.2A prioridade absoluta e a concretização da Proteção Integral;2.3 O Sistema de Garantia de Direitos e as redes de Proteção Integral;2.4 A interdisciplinaridade;2.5 O princípio do melhor interesse da criança;3. O melhor interesse da criança na Lei Geral de Proteção de Dados – uma interpretação sob um olhar e ouvir fraterno;4. A Proteção dos Dados das Crianças e Adolescentes no Artigo 14 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD);4.1. O consentimento;4.2. O consentimento utópico;4.3. A proteção específica dos dados de crianças e adolescentes;4.4. O consentimento de crianças e adolescentes na matriz do melhor interesse dentro do paradigma da Proteção Integral – uma nova perspectiva geracional; 5. Referências bibliográficas.

   

1. Os dados e o Direito

 

Os dados pessoais, ao contrário do que se pensa, não é tema recente (DONEDA, 2021, p. 3). Entretanto, a partir das inovações tecnológicas do século XXI, com a criação de um espaço intangível de interações sociais, com novas formas de relações por meio ou com o auxílio das redes, é que o tema se tornou mais notável e urgente.

 

O emaranhado de relações, que são consequências de um novo meio de interação, deve ser regulado pelo Estado Democrático de Direito. O Direito tem buscado formas de regular[1] essa realidade, marcada pela alta interação entre o mundo real e o digital, de forma a contribuir para uma maior segurança jurídica, com regras claras a respeito do tema.

 

O ordenamento jurídico brasileiro já é constituído por algumas leis que regulam o tema, sendo a principal delas a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei no. 13.709/18), por tratar, especificamente, da proteção de dados.

 

Os dados são o petróleo do século XXI (BELLI, 2017), por serem a matéria prima da sociedade informacional, globalizada e que está amparada pela internet das coisas (IoT), Tecnologia da Informação, Comunicação (TIC) e Inteligência artificial (IA).

 

O valor de mercado de empresas como Facebook e Google, o que as coloca dentre as dez mais valiosas do mundo, confirma a importância dos dados como geradores de riqueza (SANTANA, 2021). Tais empresas têm “permissão” para colher dados pessoais, e dessa maneira, conhecer os gostos, hábitos e interesses dos indivíduos.

 

Dados são as experiências, escolhas, expressões e microexpressões com que os usuários alimentam as redes.[2] Fato, é que, ao se ter dados individualizados, o controlador desses dados pode gerar uma falsa consciência coletiva coercitiva da consciência individual.

 

Há riscos em oferecer os dados pela chance da posse ilegal deles por pessoas ou empresas que não foram autorizadas a tê-los, ou até mesmo como uma forma eficiente de manipulação. Todos devem estar sob a égide da proteção dos direitos fundamentais. É o que nos determina o artigo 1º. da Lei no. 13.709/18, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ao estabelecer como seu objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.

 

As crianças e adolescentes não escapam dessa realidade e cabe ao Estado, no momento de legislar, se orientar pela proteção e pela primazia das necessidades e interesses da criança e do adolescente, que são cidadãos, em um momento ímpar de seu desenvolvimento psicológico, físico e social.

 

Este texto tem por objetivo a análise da Lei nº 13.709/2018 (LGPD) sob a perspectiva dos princípios e normas do Direito da Criança e do Adolescente, com um especial enfoque no princípio do melhor interesse da criança.  

 

2. O Direito da Criança e do Adolescente e a Proteção Integral

 

O Direito da Criança e do Adolescente se sustenta na Doutrina da Proteção Integral que foi trazida para o universo jurídico pela Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Resolução nº 44/25 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, adotada internamente através do Decreto no. 99.710 de 21 de novembro de 1990, após aprovação do Congresso Nacional mediante o Decreto Legislativo no. 28 de 14 de setembro de 1990.

 

Uma vez contemplada no artigo 227 da Constituição Federal, o texto constitucional passa a estabelecer que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente ( e, posteriormente,  ao jovem ), com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Trata-se de uma conceituação essencialmente jurídica.

 

As leis e as práticas que existiam antes de aprovada a Convenção com relação à infância respondiam a um modelo que hoje conhecemos como “modelo tutelar”, “filantrópico”, “da situação irregular” ou “assistencialista”, cujo ponto de partida era a consideração da criança como objeto da proteção, não como sujeito de direitos.

 

Não se tratou de uma simples substituição terminológica, mas de uma mudança de paradigma, de um modelo normativo para outro[3], gerando a construção de uma nova gramática, que oferece uma concepção radicalmente distinta dos direitos da infância.

 

Nesse sentido, apontamos, nos próximos subitens, qual o significado normativo da Proteção Integral da criança e do adolescente no Brasil a partir desse corpo normativo até aqui revelado.  

 

2.1. A criança e o adolescente como titulares de direitos fundamentais

 

Ao dar caráter constitucional aos direitos da criança e do adolescente, incluindo-os nos artigos 6º e 227 do Constituição Federal, o legislador constitucional os elevou à categoria de titulares de direitos fundamentais. Os direitos da criança e do adolescente se inserem, assim, na esfera dos direitos fundamentais, cuja finalidade é conferir aos indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo e, consequentemente, limitar a liberdade de atuação dos órgãos do Estado.

 

A leitura do artigo 227 da Constituição Federal encerra um catálogo de direitos dos quais crianças e adolescentes[4] são titulares. Por outro lado, a mesma leitura leva-nos a concluir que o Estado é devedor de “obrigações positivas” perante a criança e o adolescente, obrigações que concernem, em especial, a assegurar-lhes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de pô-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Nesse sentido, diz Veronese (1999, p. 186-187): 

 

O surgimento de novos direitos, mais especificamente falando, os direitos sociais das classes oprimidas, dos trabalhadores, das crianças e dos adolescentes, dos velhos, das mulheres, dos consumidores, do direito a um meio ambiente saudável, entre outros, revelam um quadro diferenciado do tradicional, pois estes novos direitos estão a exigir, na maioria dos casos, uma intervenção ativa do Estado. Portanto, não mais satisfaz uma negação ou impedimento de violação, já que são situações que tornam praticamente obrigatórias as atividades estatais. 

 

Proteger integralmente a criança e o adolescente significa, assim, conferir-lhes uma posição jurídica de titulares de direitos subjetivos aptos a exigir determinada atuação do Estado, ou seja, obrigações positivas, no intuito de melhorar sua condição de vida, garantindo-lhes os pressupostos materiais necessários para o exercício de sua liberdade, aí incluídas as liberdades “negativas”, ou seja, de resistir a uma possível intervenção do Estado.  

 

2.2 A prioridade absoluta e a concretização da Proteção Integral

 

Os direitos fundamentais da criança e do adolescente a que se vinculam o Estado – diretamente pelo texto constitucional –, a família e a sociedade – mediante as normas infraconstitucionais – têm, como visto, determinação rigorosa da área de sua proteção. E a esses direitos é dada prioridade sobre outros direitos, também constitucionalmente assegurados.

 

A prioridade absoluta constitucional é objeto do artigo 227 da Constituição Federal e do artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. O conceito contido na regra constitucional significa primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à adolescência.

 

A prioridade constitucional significa que, no concurso de vários direitos, não é possível que todos ocupem o mesmo lugar, porque foram graduados numa relação de precedência. A prioridade constitucional não diz respeito à relação de tempo, mas, sim à especialidade dos titulares dos direitos fundamentais: crianças e adolescentes. Por absoluta, podemos compreender, segundo Ferreira (1988, p. 6), algo ilimitado, irrestrito, pleno e incondicional.

 

Afastar a prioridade absoluta significa tirar a especificidade dos direitos da criança e do adolescente, situá-los no mesmo patamar dos demais titulares de direitos fundamentais.  

 

2.3 O Sistema de Garantia de Direitos e as redes de Proteção Integral

 

A inserção do paradigma de Proteção Integral na Constituição Federal, com a criança e o adolescente galgando a posição de sujeitos de direitos fundamentais com prioridade absoluta, dotados de interesses superiores, levou à estruturação de um Estatuto da Criança e do Adolescente que normatizou a atuação do Poder Judiciário na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, atribuiu ao Ministério Público e aos Conselhos Tutelares a promoção e a fiscalização dos mesmos direitos e, aos Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais, a formulação das políticas nacionais, estaduais e municipais para a criança e o adolescente, desse modo fixando uma nova concepção, organização e gestão das garantias dos direitos da criança e do adolescente.

 

Para dar maior eficácia às ações de efetivação dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, se fez necessária, assim, a atuação sistêmica dessas estruturas institucionais.

 

O Sistema de Garantia de Direitos e a rede de Proteção Integral da criança e do adolescente permitem enfrentar as dificuldades da realidade brasileira profundamente marcada pela exclusão e desigualdade social e pela perversidade no que concerne à distribuição de serviços aqui gerados, dando-lhes condição de participar não apenas dos direitos já existentes, mas de tornarem-se sujeitos-cidadãos, porque capazes de afirmar e de fazer reconhecer seus direitos.  

 

2.4 A interdisciplinaridade

 

O Direito da Criança e do Adolescente permite vivenciar o enfoque interdisciplinar que na visão de Veronese (2008, p. 59) tem as seguintes funções essenciais:

 

[...] impede a delimitação do tema sob o prisma de uma única área do conhecimento, permitindo uma maior flexibilização nas análises e, portanto, uma visão mais abrangente possível de um tema proposto; elucida que as pesquisas em Direito estão conectadas com a Sociologia, a Filosofia e Ciência política, a História, etc., as quais não devem ser percebidas como meras colaboradoras para compreensão do fenômeno jurídico, antes, este somente pode ser realmente compreendido, encarado em sua complexidade, à medida que devidamente apreendido no universo do saber humano.

 

Fato é que a abordagem interdisciplinar exige do pesquisador que identifique as disciplinas a mobilizar para além do domínio do conhecimento jurídico. Isso não significa que o pesquisador não precise deter, com segurança, os conhecimentos da dogmática jurídica (enfoque disciplinar).

 

No caso do paradigma estatutário da Proteção Integral não se vislumbra outra forma de entendê-lo e vivenciar a sua efetividade sem considerar na análise jurídica a sua conexão com outros ramos do conhecimento humano, numa posição de humildade científica, receptiva a repensar, mudar e criar respostas jurídicas que efetivamente tragam o desenvolvimento integral da criança e do adolescente.  

 

2.5 O princípio do melhor interesse da criança

 

Como efeito imediato da internalização da Convenção sobre os Direitos da Criança aparece no sistema jurídico brasileiro o princípio do melhor interesse da criança, pelo qual, com o paradigma da Proteção Integral, as políticas, ações e tomadas de decisões relacionadas com esse período da vida humana desvinculam-se do discurso das necessidades da criança e do adolescente, para compreendê-los a partir de seus próprios interesses.

 

Assim, anteriormente, esse princípio escondia um traço arbitrário que desconhecia e contrariava os direitos sob o pretexto de proteger os interesses da criança e do adolescente. O único interesse que prevalecia era o dos adultos por controlar e disciplinar a infância e a adolescência e, sob esse pretexto, criavam-se instituições assistenciais e tutelares que cerceavam o livre e saudável desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.

 

Hoje, entretanto, identifica-se no princípio uma norma cogente que cumpre sua função finalística de avaliar se as soluções propostas pelos administradores, juízes e pais são as melhores para assegurar o desfrute pleno e efetivo de todos os direitos e garantais da criança e do adolescente, dentro da perspectiva de que essa criança e esse adolescente é um ser autônomo, em processo de desenvolvimento.

 

Lembra Melo (2011, p. 59) que, por ter-se inscrito o melhor interesse sob o marco da Proteção Integral, houve um deslocamento do princípio, não se justificando mais uma postura paternalista e discricionária, mas de garantia de concreção e realização de direitos fundamentais.

 

O interesse superior da criança e do adolescente, indicado no inciso IV do parágrafo único do artigo 100 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com o acréscimo trazido pela Lei nº 12.010/2009, constitui, assim, um princípio que deve ser considerado pelo Estado na sua atividade de concepção, implantação e execução de políticas públicas, pelo Estado-juiz em sua atividade de interpretação e aplicação das normas jurídicas, e ainda pela família, que, na tomada de qualquer decisão que diga respeito aos direitos da criança e do adolescente, deve por ele orientar-se.

 

O princípio expressa a noção de um processo dinâmico no qual as decisões que se tomam hão de ser constantemente revisadas não só para atender ao crescimento da criança e do adolescente, como também para atender à evolução da família e do grupo social em que interagem e aos aspectos da vida e de crescimento daqueles que ainda não chegaram à vida adulta.

 

A determinação do melhor interesse da criança é tarefa particularmente difícil. Pereira (2000, p. 22) afirma com lucidez: “Estamos diante de um especial desafio que exigirá do jurista a descoberta de subsídios básicos para estabelecer, em face das profundas mudanças ocorridas, uma orientação coerente diante das questões que se apresentem. Desafia-nos a todos a concretização do princípio.

 

Entretanto, não é de todo errado afirmar que os paradigmas civilistas da relação familiar, ou seja, os pais e seus direitos e deveres (poder familiar) para com os filhos têm sutilezas e singularidades capazes de desatender à capacidade de decisão da criança e do adolescente, na qualidade de sujeito de direitos fundamentais, e por consequência, concorrer para que o seu interesse superior seja desatendido.

 

Deve-se verificar o que efetivamente interessa a essa criança e a esse adolescente, que estão legitimados a falar por si e a escolher conscientemente. Como lembra Melo (2011, p. 24): 

 

[...] na medida em que as crianças adquiriram competências cada vez maiores, diminui a necessidade de direção e orientação por parte dos pais, aumentando a capacidade das crianças de assumirem responsabilidades. Trata-se, portanto, de uma limitação aos direitos dos pais, mas também do Estado, em relação a crianças e adolescentes.

 

Nesse sentido, a oitiva obrigatória e a participação da criança e do adolescente nos atos e na definição de promoção dos direitos e de proteção prevista no inciso XII do parágrafo único do artigo 100 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a nova redação do artigo 28, parágrafo 1º do Estatuto, ao prever que, sempre que for possível, a criança e o adolescente sejam ouvidos, revelam a preocupação do legislador com a participação da criança e do adolescente, reflexo claro de sua posição de sujeitos de direitos e não objetos da tutela estatal e familiar.

 

E essa fala deverá se apreciada por um juiz, mediante uma abordagem multidisciplinar e atitude compromissada com a realidade (VERONESE, 1997, p. 183) bem como por um pai e por uma mãe que ouçam efetivamente essa criança e esse adolescente.  

 

3. O melhor interesse da criança na Lei Geral de Proteção de Dados – uma interpretação sob um olhar e ouvir fraterno

 

O legislador, tendo conhecimento da Proteção Integral da criança e do adolescente e do princípio do melhor interesse, destacou um dispositivo específico, dentro da Lei no. 13.709/18 (LGPD), para o tratamento dos dados pessoais desses sujeitos de direito.[5]

 

O artigo 14 da Lei no. 13.709/ 18 (LGPD) dispõe da seguinte forma a respeito do tratamento dos dados de crianças e adolescentes:

 

Art. 14. O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente.

§1º O tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal.

§2º No tratamento de dados de que trata o § 1º deste artigo, os controladores deverão manter pública a informação sobre os tipos de dados coletados, a forma de sua utilização e os procedimentos para o exercício dos direitos a que se refere o art. 18 desta Lei.

§3º Poderão ser coletados dados pessoais de crianças sem o consentimento a que se refere o § 1º deste artigo quando a coleta for necessária para contatar os pais ou o responsável legal, utilizados uma única vez e sem armazenamento, ou para sua proteção, e em nenhum caso poderão ser repassados a terceiro sem o consentimento de que trata o § 1º deste artigo.

§4º Os controladores não deverão condicionar a participação dos titulares de que trata o § 1º deste artigo em jogos, aplicações de internet ou outras atividades ao fornecimento de informações pessoais além das estritamente necessárias à atividade.

§5º O controlador deve realizar todos os esforços razoáveis para verificar que o consentimento a que se refere o § 1º deste artigo foi dado pelo responsável pela criança, consideradas as tecnologias disponíveis.

§6º As informações sobre o tratamento de dados referidas neste artigo deverão ser fornecidas de maneira simples, clara e acessível, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, com uso de recursos audiovisuais quando adequado, de forma a proporcionar a informação necessária aos pais ou ao responsável legal e adequada ao entendimento da criança – grifo nosso.

 

O tratamento diferenciado que se dá aos dados desses cidadãos revela que o foco da lei é a proteção do titular dos dados, crianças e adolescentes, e não os dados em si. Henriques , Pira e Hartung (2021, p. 201) apontam alguns riscos específicos: i) a exposição à contatos maliciosos de terceiros; (ii) que haja alguma discriminação a partir dos dados pessoais; (iii) ou até mesmo a prática abusiva de publicidade infantil.

 

O “caput” do artigo 14 destaca o princípio do melhor interesse, que se revela, como visto, não como um conceito discricionário, mas determinável a partir da garantia e da salvaguarda da doutrina da Proteção Integral.

 

Trata-se de se capturar o melhor interesse da criança e do adolescente, a partir de sua participação e próprio envolvimento, não estando os pais, a sociedade e o Estado livres para decidir eles mesmos o que atende aos interesses desses cidadãos. Se por um lado, as ações e decisões dos pais, sociedade e do Estado precisam assegurar os direitos das crianças e adolescentes, de acordo com a sua idade e maturidade, dentro de uma perspectiva protetiva, por outro lado, devem garantir a transferência da tomada de decisões à esse cidadãos, seja mediante a participação, com a oitiva de seus interesses, seja fazendo com que, gradualmente, tomem a responsabilidade para si.

 

Manuel Pinto e Sarmento (1997, p. 5 - 6) chamam a atenção para uma tensão entre “proteção” e “participação”, observando que a perspectiva protetiva de pais, sociedade e Estado leva a um esvaziamento da cidadania infanto adolescente:

 

Segundo uma linha de pensamento paternalista, as crianças necessitam de protecção, exactamente porque são incapazes de agir com maturidade (ou mesmo, numa versão mais radical do paternalismo, com capacidade racional) por si próprias, num mundo semeado de perigos e obstáculos. Deste modo, a participação — e autonomia que lhe é correlativa — é contraditória com a protecção necessária ao desenvolvimento da criança. Esta perspectiva, na qual não é possível deixar de ver a velha teoria da criança como "homúnculo" — ser humano miniatural em processo de crescimento — não apenas não considera o princípio pedagógico formulado pela Educação Nova que afirma a autonomia como condição de desenvolvimento — o que, curiosamente, ao invés do paternalismo, faz coincidir protecção com participação —, como retira às crianças o estatuto de actores sociais, destinando-lhe a função exclusiva de destinatários das medidas protectoras dos adultos, inerentemente "sábios, racionais e maduros". – grifos nosso.

 

O acesso e a determinação do melhor interesse de crianças e adolescentes devem estar, assim, baseados em uma objetividade que assegure à criança e ao adolescente a completa e efetiva realização de todos os seus direitos, assegurados no ordenamento jurídico brasileiro, bem como no atendimento de seus interesses, de acordo com a sua idade e maturidade, mas direcionados para uma crescente autonomia. Trata-se de princípio/regra procedimental/instrumental à disposição dos avanços dos direitos e interesses das crianças e adolescentes.

 

Os legisladores, intérpretes e aplicadores das normas jurídicas direcionadas aos direitos e interesses infanto adolescentes devem estar atentos para uma realidade social, muitas vezes não capturada pelo direito, inclusive pelo Direito da Criança e do Adolescente – recorrentemente criticado por outras ciências humanas por trazer uma infância idealizada  – afastando-se o paradoxo entre um ideal de proteção adultocêntrica, ao retirar da criança e adolescente a sua capacidade de falar de si, fragilizando a sua posição de sujeitos de direito, e a exata proteção, sob o paradigma da doutrina da Proteção Integral, que exige, para a sua plena realização, que o melhor interesse seja alcançado dentro uma olhar e ouvir mais participativo da criança e do adolescente.

 

Essa perspectiva participativa exige dos pais, sociedade e Estado um esforço no sentido da educação, formação e conscientização de todos, instituições e indivíduos, sejam adultos ou crianças e adolescentes da realidade social e dos desafios econômicos, educacionais, políticos, psicológicos, físicos, que o tempo atual e a posição no mundo impõem a todos. Trata-se, em suma, de um olhar mais fraterno para o Outro, iluminando ainda mais a sua posição de sujeitos de direitos das crianças e adolescentes.  

 

4. A Proteção dos Dados das Crianças e Adolescentes no Artigo 14 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)

 

Para além do princípio do melhor interesse da criança, a Lei no. 13.709/18 (LGPD) traz, de forma expressa, no artigo 6º., um arcabouço principiológico. É de observar que, tratando-se de uma norma que regula o mundo digital, muitas são e serão as situações fáticas não alcançadas pelas regras de “tudo ou nada”, aumentando, exponencialmente, a necessidade de se buscar princípios, uma vez que a tecnologia se renova a cada dia, com novas descobertas e funcionalidades.[6]

 

Dentre muitos, merece referência o princípio da autodeterminação informativa (SARLET, 2021, p. 30), que não tem previsão expressa na LGPD. O inciso II do artigo 2º, entretanto, a ele faz referência ao trazer os fundamentos da proteção de dados pessoais. É possível entender o princípio como o poder de controle do cidadão sobre os seus dados[7].

 

Tal controle se insere na denominada liberdade positiva. Se antes a privacidade estava relacionada a uma liberdade negativa, ou seja, uma garantia do indivíduo de não sofrer interferência de terceiros em seu espaço de intimidade, atualmente, para além dessa liberdade negativa, em vista da grande circulação de dados e dos avanços tecnológico, se apresenta uma liberdade positiva, que dá ênfase na autonomia e no domínio do titular sobre os seus dados.

 

Elucida Bruno Bioni (p.6): 

 

Assim, a privacidade está, em meio a esse mercado informacional, atrelada a uma liberdade positiva, qual seja, de controle dos dados, reclamando uma regulação ex ante para que o sujeito tenha autonomia quanto à circulação de suas informações (autodeterminação informacional). Afasta-se, assim, de uma regulação a posteriori a ser dirimida numa responsabilização (sanção negativa) com claros contornos repressivos.[8]

 

Depreende-se desse princípio que fica dependente da autorização do indivíduo, no exercício de sua liberdade positiva, qualquer tratamento de dados pessoais.

 

A respeito do tema, merece destaque a observação de Ingo Wolfgang Sarlet (2021, p. 31):  

 

Na sua multicitada decisão, o Tribunal Constitucional, contudo, não reconheceu diretamente um direito fundamental à proteção de dados pessoais, mas, deduziu, numa leitura conjugada o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, um direito fundamental implícito à autodeterminação informativa, que, consiste em suma e de acordo com o Tribunal, na prerrogativa de cada indivíduo decidir em princípio e substancialmente, sobre a divulgação e a utilização de seus dados pessoais.

(...)

Na condição de direito de defesa (direito à não intervenção arbitrária), o direito à autodeterminação informativa consiste em um direito individual de decisão, cujo objeto (da decisão) são dados e informações relacionados a determinada pessoa indivíduo. A relação do direito à autodeterminação informativa com o princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, é, em certo sentido, dúplice, pois se manifesta, tanto pela sua vinculação com a noção de autonomia, quanto com a do livre desenvolvimento da personalidade e de direitos especiais de personalidade conexos, de tal sorte que a proteção dos dados pessoais envolve também a salvaguarda da possibilidade concreta de tal desenvolvimento, para o qual a garantia de uma esfera privada e íntima é indispensável.  

 

No entanto, como se verá, o princípio da autodeterminação informativa se mostra uma ficção jurídica, o que não lhe retira o poder de bússola para as decisões dos magistrados e para a lógica da criação normativa do legislador.  

 

4.1. O consentimento

 

O consentimento[9] do titular dos dados, para que sejam utilizados, vai depender da sua natureza, uma vez que, tratando-se de dados sensíveis, deverá atender a requisitos mais rígidos.

 

O dado pessoal sensível é conceituado no artigo 5º, inciso II da LGPD, e se caracteriza por se inserir na esfera íntima do sujeito. São dados, por exemplo, sobre a origem racional ou étnica, convicção política ou até mesmo dados referentes a saúde ou à vida sexual de seu titular.

 

As hipóteses de tratamento dos dados sensíveis estão no artigo 11 da LGPD e devem ser tratados de forma mais rígida daqueles objeto do artigo 7º, referente aos dados pessoais de forma geral.

 

Enquanto o artigo 7º, inciso I faz referência, apenas, ao consentimento, o artigo 11, inciso I, por sua vez, diz que o consentimento se dará de forma específica e para finalidades específicas.

 

Mesmo existindo essa diferença entre os dados pessoais e os dados pessoais sensíveis, a LGPD não menospreza nenhum tipo de dado, ou seja, todos os dados são protegidos pela lei, e o artigo 1º deixa isso claro ao se referir ao tratamento de dados, sem qualquer ressalva.

 

A proteção ampla é absolutamente acertada, pois os dados, mesmo quando não sensíveis, podem levar a informações peculiares que possuem maior relação com os dados sensíveis, atingindo assim a personalidade do indivíduo.  

 

Na Lei Geral de Proteção de Dados, parte-se da ideia de que todo dado pessoal tem importância e valor. Por essa razão, adotou-se conceito amplo de dado pessoal, assim como estabelecido no Regulamento europeu 2016/679, sendo ele definido como informação relacionada a pessoal natural identificado ou identificável. Dados que pareçam não relevantes em um momento ou que não façam referência a alguém diretamente, uma vez transferidos, cruzados ou organizados, podem resultar em dados bastantes específicos sobre determinada pessoa, trazendo informações inclusive de carácter sensível sobre ela, conforme já observou o Bundesverfassungsgericht (Tribunal Federal Alemão) no emblemático julgamento sobre a lei do censo de 1983. (VIOLA, 2021, p. 117 – 188)  

 

O tratamento dos dados sensíveis ou não se faz por meio do consentimento, conceituado pela LGPD como a manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada.

 

Deve ser observado que o conceito de consentimento é dado por meio de adjetivos, o que facilita a sua explicação e possibilita a fácil relação com os princípios do artigo 6º da LGPD.

 

O primeiro adjetivo é o “livre” que se revela como uma premissa para que haja o próprio consentimento, uma vez que, havendo algum tipo de coação ou pressão, sequer se poderia falar em algo “consentido”. Exemplo do consentimento livre é quando se permite que o titular dos dados atue com o consentimento granular, ou seja, podendo modular o quanto de seus dados serão tratados, até que ponto irão absorver de sua persona e o quanto será o poder de influência estabelecido a partir do tratamento dos mesmos (VIOLA, 2021, p. 154).

 

O segundo adjetivo se refere a um consentimento “informado”, vinculando-o, claramente, ao princípio da transparência, ou seja, o titular dos dados não pode consentir algo que não esteja claro suficiente para uma compreensão objetiva. Caso venha a consentir em situação de esclarecimento adversa, o consentimento poderá vir a ser considerado nulo como disposto no artigo 9, §1º da LGPD. (VIOLA, 2021, p. 153).

 

O terceiro adjetivo é “inequívoco”, relacionado ao princípio da finalidade, não podendo o titular consentir o tratamento dos dados para algo genérico, devendo ser direcionado para um objetivo certo, sem interpretações abrangentes.

 

Observa-se, por oportuno, que o consentimento, da forma como a lei o colocar é algo utópico. Isso fica claro quando se exige o consentimento, por exemplo, após a leitura dos termos de utilização de um aplicativo de redes sociais, a uma por ser algo cansativo e técnico a duas pelo tempo que toma a sua leitura.  

 

4.2. O consentimento utópico

 

Não há outra forma de melhor de explicar o carácter utópico do consentimento, senão por este questionamento: Quando o usuário seleciona “Li e aceito os termos” ele realmente leu e compreendeu o que estava assinalando?

 

Tal questionamento já revela dois obstáculos para um efetivo consentimento: (i) o quanto aquele texto é acessível para uma leitura adequada ao momento da solicitação, ou seja, quando alguém está criando uma conta do Facebook, está preparado para ler cláusulas e termo, escritos em letras pequenas, que exigem alto grau de atenção? e (ii) uma vez ultrapassa essa primeira etapa, teria uma real compreensão dos termos técnicos e da linguagem utilizada?

 

Os serviços digitais, como as redes sociais, são acessados por um público variado em sua idade, gênero, localidade, instrução, diferentes tipos de formações, dentre tantas outras características que os diferem entre eles.

 

A LGPD, através do princípio da transparência busca impedir que o consentimento seja algo afastado de sua essencialidade, ao estabelecer que o consentimento é nulo se as informações não forem prestadas com transparência, buscando-se focar mais em elementos visuais e autoexplicativos.

 

Marcio Pestana (p. 6) expõe acerca do princípio da transparência:  

 

A ênfase da transparência deseja destacar a importância que a LGPD dispensa à fluidez de informações para o titular dos dados tratados, afinal, ele, titular, juntamente com os seus dados, constituem os elementos mais importantes de todo o processo de tratamento.

Informações claras, a propósito, é expressão que procura indicar que a utilização de conteúdo excessivamente técnico e até hermético não se compagina com o objetivo de tal princípio, pois o que se procura garantir é que pessoas naturais, seja qual for o grau cultural que detenham, possam, praticamente num relance d’olhos, compreender do que se trata a informação correspondente, especialmente porque, para que todo o procedimento ocorra, é imprescindível que compreenda o que ocorrerá com os seus dados após tratados.  

 

De forma a evitar o consentimento utópico e em atendimento o princípio da transparência o mundo digital deve estar preparado para apresentar as condições e termos de proteção para que o público de todas as idades, gênero, localidade, instrução de diferentes tipos de formações possam compreender e lançar livremente o seu consentimento.

 

Essa é a preocupação que se ressalta no artigo 14 da LGPD, que trata especificamente do consentimento de crianças e adolescentes.  

 

4.3. A proteção específica dos dados de crianças e adolescentes

 

O §1º do artigo 14 da LGPD estabelece a necessidade do consentimento de pelo menos um dos pais ou responsável legal da criança (pessoa natural com até 12 anos). Entretanto, o mesmo dispositivo legal não faz qualquer referência no tocante à representação do adolescente, o que nos faz refletir se deveria haver uma interpretação abrangente considerando também o adolescente ou restrita, excluindo o adolescente da necessidade de representação.

 

É notável a importância do consentimento, o que nos faz constatar que a referida norma legal é, especialmente, desafiadora, uma vez que, como vimos, se o consentimento do próprio titular dos dados é questionável, imaginemos a sua fragilidade quando é dado através da representação de outrem, mesmo que pelo representante legal.

 

Estaria a vontade e os interesses das crianças e adolescentes resguardados? Como atender, no contexto da norma legal, o princípio do melhor interesse da criança?[10]

 

A esse tema voltaremos no item 4.4.infra, mas antes temos que analisar os demais aspectos do artigo 14 da LGPD, cuja interpretação exige menos do intérprete.

 

O princípio da transparência se revela no §2º do artigo 14 da LGPD ao impor sobre os controladores de dados, o dever de manter a publicidade das informações, informando quais dados foram coletados e como serão utilizados. (BOTELHO, 2020, P. 220)

 

Buscando o melhor interesse, o §3º, do artigo 14 da LGPD abre a possibilidade de tratamento dos dados pessoais das crianças, mesmo sem o consentimento a que se refere o §1º quando a coleta for necessária para contatar os pais ou responsável legal. A dispensa é provisória, e ocorre objetivando a segurança da própria criança, vedando que o tratamento desse dado se dê em outras situações, que não a prevista na norma, limitando-se a sua interpretação.[11]

 

Já o §4º, do artigo 14 da LGPD se refere a uma realidade que não pode ser ignorada, ou seja, dos jogos e aplicações da internet, deixando claro que tais serviços não poderão ser condicionados ao fornecimento de dados pessoais, excetuando os necessários à atividade.

 

Preocupação razoável do legislador que compreende que ao tratar sobre os direitos das crianças e dos adolescentes não se pode colocar obstáculos ao acesso a um jogo por uma criança, por exemplo, com o objetivo de obtenção de dados pessoais, o que estaria em clara violação aos direitos e interesses protegidos, afastando o princípio do melhor interesse, que prioriza o bem-estar, o lazer e as atividades lúdicas. (Ibid., p. 224)  

 

O dispositivo prestigia o princípio da minimização dos dados, segundo o qual os dados devem ser adequados, pertinentes e limitados ao que for necessário relativamente às finalidades para as quais serão tratados. Se houver desrespeito a tal previsão, o tratamento será considerado abusivo, mesmo tendo havido o consentimento do responsável pela criança.  Por meio dessa disposição, busca-se afastar políticas de tudo ou nada, em que o usuário ou aceita todas as disposições e termos do serviço ou não pode utilizá-lo. (CGI. BR., 2019)  

 

Ainda sobre consentimento, vale ressaltar que o próprio §5º do artigo 5º., estabelece que o controlador deverá realizar todos os esforços razoáveis para verificar se o consentimento foi dado pelo responsável pela criança.

Com vimos, as questões relacionadas ao caráter utópico do consentimento, em especial de criança e adolescentes, na matriz do princípio do melhor interesse dentro do paradigma da Proteção Integral, merecem um aprofundamento que passamos a fazer no item 4.4. infra.

 

Por fim, o §6º, do artigo 14 da LGPD reforça ainda mais a transparência no tratamento de dados, devendo as informações sobre o tratamento de dados serem fornecidas de forma simples, clara e acessível, para os pais, ou responsáveis e adequada ao entendimento da criança.

 

Mesmo que o dispositivo legal faça referência tão somente a criança, é importante notar que o adolescente, como sujeito de direito, está incluído na exigência legal.

 

Ainda no mesmo parágrafo §6º, do artigo 14 da LGPD há referência às características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, o que demonstra uma preocupação do legislador, para além da faixa etária do titular dos dados. (BOTELHO, 2020, p. 227)  

 

4.4. O consentimento de crianças e adolescentes na matriz do melhor interesse dentro do paradigma da Proteção Integral – uma nova perspectiva geracional

 

O disposto no parágrafo primeiro do artigo 14 da LGPD a respeito do consentimento de crianças e adolescentes no tocante aos seus dados pessoais é desafiador para aqueles que estudam e buscam interpretar as normas jurídicas dentro da estrutura principiológica e paradigmática do Direito da Criança e do Adolescente.

 

O consentimento de crianças e adolescentes é regulado, sob a perspectiva normativa, na matriz civilista e patrimonial do Código Civil brasileiro. Entretanto, olhar qualquer normativa que se refira aos direitos e interesses da criança e do adolescente sob a matriz exclusivamente civilista não encontra mais guarida no ordenamento jurídico brasileiro.

 

A redação do parágrafo primeiro do artigo 14 da Lei Geral de Proteção de Dados nos faz acreditar que o legislador pretendeu o afastamento do referencial civilista ao não impor, expressamente, a necessidade do consentimento dos pais ou representante legal no tocante aos dados de adolescentes.

 

É, sem dúvida, desafiadora a interpretação da norma legal, que nos exige um esforço de tradução do disposto na lei dentro da matriz do melhor interesse, sob a égide da doutrina da Proteção Integral.

 

Como vimos, sob o paradigma da Proteção Integral, os direitos e interesses das crianças e adolescentes passaram a ocupar um espaço normativo autônomo e privilegiado, que apesar de interagir com normas civis, penais e processuais, dentre outras, se apoiam em um núcleo principiológico que deve assegurar à criança e ao adolescente a completa e efetiva realização de todos os seus direitos e interesses, observada as questões relacionada à idade e maturidade, mas direcionada para uma crescente autonomia.

 

Maior autonomia não significa menor proteção, mas sim maior participação, abrindo-se a possibilidade de pensar em uma responsabilização jurídico-normativa diferenciada que se aproxime da realidade social na qual crianças e adolescentes se encontram inseridas, que não significa, em absoluto, trazer para o âmbito do Direito da Criança e do Adolescentes, o arcabouço normativo que se impõe sobre os adultos.

 

Dentro desse contexto, é possível se vislumbrar uma forma diferenciada de interpretação dos textos normativos direcionados aos direitos e interesses das crianças.

 

Trata-se de um olhar fraterno sobre a relação das crianças e adolescentes com os adultos sob a perspectiva de um pacto geracional, que surge a partir de influências sociais, culturais, econômicas, religiosas e histórica, tratando-se de um contrato dinâmico, que se materializa de forma diferente no espaço-tempo. (QVORTRUP, 2011, p. 330)

 

Ter uma visão de contrato geracional nas relações das crianças, adolescentes e adultos, cria uma relação de bilateralidade, baseada na responsabilidade e comprometimento mútuo (PÉREZ; SILVA, 2021, p. 119), sendo assim uma troca entre gerações[12]. Pela ordem histórica e evolução social, esse pacto entre crianças e adultos é marcado pela proteção e representação do adulto em frente aos interesses das crianças e adolescentes.

 

Contudo, mesmo que a representação de pais e responsáveis, em certos momentos seja necessária, não se deve tê-la como expressão de um autoritarismo geracional, uma vez que a com a autonomia progressiva do indivíduo – seja pela idade, conhecimento e experiências – a necessidade diminui, e o empoderamento do sujeito aumenta.

 

A priorização da representação por adultos ( pais e representantes legais), por se tratar de um grupo distinto, com posições e ideias que podem ser conflitantes com a dos adolescentes e crianças, leva a sobreposição dos anseios do representante sobre os do indivíduo representado, ultrapassando a real dependência e necessidade  por parte de crianças e adolescentes, revelando-se o egoísmo adultocêntrico dos adultos, que têm dificuldade de entender que o seu papel representativo diminui a partir do momento que o outro ganha autonomia, tornando-se dispensável e indesejável a sua representação, pois essa pode ser conflitante com a do outro.

 

Castro (2008), expõe:  

 

O que me parece importante assinalar é que, enquanto historicamente necessária, a relação de representatividade assumida por adultos em relação a crianças e jovens, instaura um modo suplementar de expressão de voz e identidade da criança e do jovem. O que quero dizer com isto? Penso que essa representação deixa de ser transparente – ou seja, ela nunca reflete totalmente os anseios dos representados, assim como ela nunca organiza tão eficazmente sua voz, ou nunca reivindica de modo adequado sua vontade. Ou seja, ela é insuficiente. Mas, mais do que isso, além de ser insuficiente, ela também qualifica indevidamente os representados, na medida em que os adultos acrescentam algo de si próprios, de sua própria identidade àquela da criança e à do jovem quando os representam. – Grifo nosso.  

 

Dentro dessa perspectiva, surge uma possibilidade de interpretação do artigo 14, da LGPD, em especial os seus parágrafos primeiro e quinto, [13]compreendendo-se que a criança até 12 anos necessita de uma maior proteção, o que essa se expressa na obrigatoriedade do consentimento do responsável legal.

 

Entretanto, aos direitos e interesses dos adolescentes deve-se atribuir maior autonomia[14], sem que o referencial principiológico/protetivo da Proteção Integral seja afastado - expresso no princípio do “melhor interesse da criança constante do “caput” do artigo 14 - abrindo-se a possibilidade da interpretação do dispositivo legal no sentido de que o consentimento de pais e responsável legal, na relação contratual cujo objeto nuclear são os dados, não seja necessário.

 

Trata-se de interpretação da norma jurídica que exigirá um reposicionamento social e político entre sociedade, Estado, pais e responsáveis legais, no que diz respeito à formação e educação digital de crianças e adolescentes, a fim de dar, em especial, aos adolescentes uma clara compreensão dos riscos que o mundo digital representa.

 

Por último, não podemos deixar de destacar que o legislador brasileiro deveria ter sido mais preciso no tocante à fixação das faixas etárias e das ações submetidas à representação ou não de pais e representantes legais, a exemplo que ocorreu em legislações de outros países.[15]

 

5. Referências bibliográficas

 

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BOTELHO, Marcos César. A LGPD E A PROTEÇÃO AO TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. REVISTA DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS (UNIFAFIBE), ISSN 2318-5732 – VOL. 8, N. 2, 2020.  

 

CASTRO, L. A politização (necessária) do campo da infância e da adolescência. Psicologia Política, [s. l.], v. 14, n. 7, 2008.  

 

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[1] Quando se menciona a busca pelo Direito de regular, é embasado na interpretação do direito no sentido objetivo, como um conjunto de normas, com um enfoque teórico dogmático e não zetético. Explica Ferraz Junior (2019, p. 19): “Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada configura-se como um dever-ser (como deve ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar a ação.”

 

[2] A definição citada no texto está relacionada a um conceito geral de dados, e não em um enfoque jurídico. Mas, é de extrema importância o conhecimento desse conceito geral, usado para matérias da computação, para poder se ter uma melhor compreensão no âmbito jurídico, quando se falar dos dados pessoais, que possui definição legal tanto no Art. 5.º, I, da LGPD como no art. 4, nº1, do RGPD. Já havendo até discussão sobre os dados pessoais vir a ser um direito fundamental, devendo ser tutelado pela Constituição Federal. Assim expõe Wolfgang (2021, p. 42):“Nota-se, ainda, que, embora o direito à proteção de dados pessoais, como direito fundamental que é, tenha esteio na Constituição, não há, no texto constitucional brasileiro (ao menos por ora), qualquer referência direta a posições jurídico-subjetivas específicas que possam estar albergadas por seu âmbito de proteção, o que, todavia, não quer dizer que não encontrem fundamento constitucional implícito.”

 

[3] É necessário pensar, a nosso ver, a discussão axiológica e filosófica sobre o caráter de “doutrina” da Proteção Integral, considerando as observações que Ferrajoli (2010, p. 299-300) faz com relação ao tema “teorias das penas” (“absolutas”, “relativas”, “retributivistas”, “utilitaristas”, “de prevenção geral” ou “de prevenção especial”). Para o autor modelos normativos de avaliação ou justificação não são teorias e sim doutrinas, porque não consistem em asserções empíricas, verificáveis e falsificáveis, mas sim respostas a questões ético-filosóficas. Nesse contexto, podemos concluir que a Proteção Integral constitui verdadeira “doutrina” que pautou os documentos internacionais e nacionais no tocante à proteção da criança e do adolescente.

 

[4] Observa-se, por oportuno, que o art. 227 da Constituição Federal foi alterado pela Emenda Constitucional 65/2010, e o dever jurídico da família, sociedade e do Estado de fazer cumprir os direitos fundamentais das crianças e adolescentes foi estendido aos jovens, que passam a ser detentores de prestações positivas, as quais devem ser tomadas com prioridade absoluta.

 

[5]A LGPD, em seu Artigo 14, dispõe de forma específica acerca do tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes. Conforme disposto, o tratamento deverá ser realizado no melhor interesse desses sujeitos, levando-se em conta especialmente as normas protetivas estabelecidas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Busca-se, assim, assegurar que o desenvolvimento físico, mental, moral e social desse público ocorra de forma digna, respeitando-se a autonomia existencial e o livre desenvolvimento da personalidade de cada um. Comitê Gestor da Internet no Brasil. TIC KIDS ONLINE BRASIL: Pesquisa Sobre o Uso da Internet por Crianças e Adolescentes no Brasil. Disponível em: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/216370220191105/tic_kids_online_2018_livro_eletronico.pdf. Acesso em: 03/05/2021, p. 51.

 

[6] Assim, expõe PESTANA: “Certamente assim o fez, por desde logo vislumbrar que o amplo cenário atingido pela LGPD, no tocante ao tratamento, não poderia ser contemplado pelo normativo em sua totalidade, de maneira taxativa, muita das vezes sendo necessário, sobretudo ao interprete e aplicador do direito, recorrer-se dos  princípios jurídicos especificados, para adotá-los, em conjunto com outros consagrados princípios hóspedes da ordem jurídica, na dirimência de dúvidas e, mesmo, conflitos, que as pessoas naturais, jurídicas, órgãos e entidades poderão travar ao aplicar, em concreto, a LGPD em situações envolvendo o tratamento de dados.” (p. 1).

 

[7] Em decisão do Tribunal Constitucional Alemão, quando se referiu à autodeterminação informativa, teve o entendimento que ele surgia a partir de outros princípios, como o da personalidade. Tendo cada cidadão o direito de decidir sobre o tratamento dos seus dados pessoais, ou seja, o direito a autodeterminação informativa, que se mostra diferente do direito à privacidade, já que se caracteriza como um direito positivo e dinâmico, que se pauta na não inviolabilidade de terceiros, já que se tem o direito de decidir, atuar. “Em 1983, o governo federal alemão planejava conduzir um recenseamento geral da população. No entanto, houve grande insatisfação popular pelo receio de uma excessiva vigilância e a sensação de que um censo seria uma invasão injusta à privacidade. Estes sentimentos levaram a um acalorado debate público, o que resultou em apelos por um boicote e no ajuizamento de Reclamações Constitucionais no Bundesverfassungsgericht, o qual decidiu que a Lei Censo Demográfico era parcialmente inconstitucional e, portanto, foi anulada, pondo fim ao censo temporariamente. Nesta decisão, chamada de Volkszählungsurteil, o Tribunal Constitucional Federal cunhou um novo direito fundamental: a autodeterminação informativa, âncora legal para proteção de dados na Constituição alemã.” (ASSMANN, 2014, p. 33.).

 

[8] A autodeterminação informativa tem origem alemã, surgindo como uma garantia subjetiva do cidadão em meio ao poder estatal que tinha o intuito de fazer um censo, entretanto, a população viu nesse ato uma excessiva vigilância do Estado que estaria ferindo a privacidade de cada cidadão. (BIONI, p. 6.).

 

[9] É interessante notar a importância do consentimento no contexto do tratamento dos dados, como bem elucidado por Mendes: “Ao longo das últimas cindo décadas, muitas das discussões relacionadas à regulação da privacidade e da proteção de dados pessoais destinaram bastante foco em torno do consentimento expressado pelo titular dos dados. Nesse sentido, não é exagero afirmar que o consentimento tem figurado como instrumento regulatórios central e núcleo de legitimidade prática desse regime protetivo. Ele é ligo, ainda, como expressão de autonomia individual e do controle do titular dos dados em torno de seus direitos de personalidade, contudo sem inviabilizar o livre fluxo desses dados, elemento relevante para uma série de atividades econômicas e até mesmo para a elaboração de políticas públicas.” (2021, p.74). Também há previsão expressa sobre o consentimento na LGPD, em seu art. 5º, inciso XII: consentimento: manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada;

 

[10] Cf., “São muitas as ameaças possíveis de serem derivadas do tratamento de dados pessoais. Vão de falta de conhecimento por parte das pessoas cujos dados foram tratados até consequências práticas negativas a esses indivíduos, decorrentes do uso ou da exposição de seus dados pessoais, tanto no âmbito social e comportamental, como na realização de negócios e contratos de consumo. A forma como hoje se dá o processamento de dados pessoais possibilidade um ilimitado armazenamento de informações, bem como seu tratamento de maneira a permitir a rápida identificação do perfil de cada indivíduo de maneira bastante completa e aproximada, sem que a pessoa sequer tenha conhecimento o participe ativamente dessa junção de peças que formam o quebra-cabeça com a sua imagem, preferência, talentos, doenças, fraquezas etc.” (HENRIQUES; PIRA; HARTUNG, 2021, p. 201).

 

[11] Cf., “Neste sentido, entendemos que poderá haver o repasse a terceiro, sem o consentimento previsto no § 1º do artigo 14 da LGPD, quando a situação concreta demandar esta medida para fins de proteção à vida e a incolumidade física da criança e do adolescente, o que nos leva a concluir que a parte final é aplicável somente aos casos em que a coleta será necessária para contatar os pais ou o responsável legal.   Não faria sentido diante do princípio do melhor interesse da criança vedar-se totalmente o compartilhamento que poderia evitar risco à vida e a incolumidade física da criança. Seria prestigiar mais a forma do que o espírito da lei.” (Ibid., p. 221).

 

[12] Qvortrup, (2011, p. 330) menciona que o valor utilitarista da criança na idade contemporânea se mostra turvo, pois não possuem mais um papel familiar, tendo em vista que não realizam mais trabalhos manuais contribuindo com o núcleo familiar, mas, sim, exigem investimento e tempo dos pais, sendo esse um motivo da queda de natalidade, contudo, trata-se de um pensamento  errôneo, pois as crianças passaram de uma utilidade familiar, e se tornaram um bem público, em suas palavras: “É sob essa nova realidade que o conteúdo do contrato geracional contemporâneo deve ser abordado. Tal realidade sugere que (1) o trabalho infantil não desapareceu, mas é imanentemente realizado sob um novo sistema, ou seja, por meio do trabalho escolar e, portanto, refere-se ao Estado e não à família como economia relevante; (2) não são mais as crianças biológicas que, pessoalmente, fornecem e cuidam dos pais idosos; é a geração posterior que provê as aposentadorias de todos os idosos – casais com ou sem filhos – por meio do chamado sistema de contribuição previdenciária.”

 

[13]Verifica-se que a leitura do artigo 14 da LGPD converge para uma visão utópica do consentimento, pois o legislador ao invés de trazer alguma forma verificação se o consentimento se deu pelo responsável, apenas se preocupa em verificar com aspectos formais, ou seja, se há menção a essa responsabilidade, diferente da Children’s Online Privacy Protect Act (COPPA), que traz algumas sugestões :” Métodos para consentimento verificável dos pais. (1) O operador deve fazer esforços razoáveis ​​para obter o consentimento verificável dos pais, levando em consideração a tecnologia disponível. Qualquer método para obter o consentimento verificável dos pais deve ser razoavelmente calculado, à luz da tecnologia disponível, para garantir que a pessoa que fornece o consentimento seja o pai da criança. (2) Os métodos existentes para obter o consentimento verificável dos pais que satisfaçam os requisitos deste parágrafo incluem: (i) Fornecer um formulário de consentimento a ser assinado pelos pais e devolvido à operadora por correio postal, fax ou digitalização eletrônica; (ii) Exigir que um pai, em conexão com uma transação monetária, use um cartão de crédito, cartão de débito ou outro sistema de pagamento online que forneça notificação de cada transação discreta ao titular da conta principal; (iii) fazer com que um dos pais ligue para um número de telefone gratuito com pessoal treinado; (iv) Ter um pai conectado a uma equipe treinada por meio de videoconferência; (v) Verificar a identidade de um dos pais comparando uma forma de identificação emitida pelo governo em bancos de dados de tais informações, onde a identificação do pai é excluída pelo operador de seus registros imediatamente após a verificação ser concluída; ou (vi) Desde que um operador que não “divulgue” (conforme definido por §312.2) informações pessoais de crianças, possa usar um e-mail juntamente com etapas adicionais para fornecer garantias de que a pessoa que fornece o consentimento é o pai. Essas etapas adicionais incluem: Enviar um e-mail de confirmação para os pais após o recebimento do consentimento, ou obter um endereço postal ou número de telefone dos pais e confirmar o consentimento dos pais por carta ou telefonema. Um operador que usa esse método deve avisar que o pai / mãe pode revogar qualquer consentimento dado em resposta ao e-mail anterior.” (Cf. a parte 312, que se refere objetivamente a proteção de privacidade online de crianças, o artigo mencionado encontra-se no §312.5 Consentimento dos pais. Disponível em: https://www.ecfr.gov/cgi-bin/text idx?SID=4939e77c77a1a1a08c1cbf905fc4b409&node=16:1.0.1.3.36&rgn=div5#se16.1.312_15 . Acesso em: 26/05/2021.) É de se notar que a legislação norte americana não trouxe, de forma genérica, a responsabilidade de verificar se realmente o responsável legal deu o consentimento, mas, sim, trouxe exemplos de como isso poderia ser feito.

 

[14] Assim expõe Almeida (2018, p. 66): “Sendo assim, em relação aos adolescentes o dever emancipatório se mostra mais latente do que o de proteção, entretanto, este subsiste. O respeito pelas escolhas individuais deve ocupar maior espaço em relação às crianças, tendo-se em vista o maior discernimento alcançado. Sob esta ideia, chega-se a conclusão que o poder familiar deve ser balanceado entre o respeito à autonomia da criança e do adolescente, a promoção da emancipação do menor, este relacionado com a função educativa, e o dever de cuidado. Logo, percebe-se que a decisão dos pais sob os filhos não deve ser tomada de maneira a atender só o que os pais pensam que seja correto ou ideal, sem considerar as opiniões de quem vai recair a decisão, ao contrário, a observância em relação às vontades das crianças e dos adolescentes é fundamental.”

 

[15] No que se refere aos EUA, em especial a Califórnia, tem-se a Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia (CPPA), a qual menciona –   “As empresas só podem vender as informações pessoais de uma criança que saibam ter menos de 16 anos se obtiverem autorização afirmativa (“opt-in”) para a venda das informações pessoais da criança. Para crianças menores de 13 anos, essa opção deve vir dos pais ou responsáveis ​​pela criança. Para crianças com pelo menos 13 anos, mas menores de 16 anos, o opt-in pode ser da criança.” (Cf. as informações prestadas pelo Departamento de Justiça da Califórnia. Disponível em: https://oag.ca.gov/privacy/ccpa  .Acesso em: 26/05/2021.)   Veja que a CPPA deixa clara que a necessidade do consentimento dos pais se dá para menores de 13 anos. O termo utilizado, “opt-in”, refere-se ao aceite, quando a pessoa autoriza, a partir de uma ação sua, diferente do “opt-out”, que ocorre, por exemplo, quando se recebe aquele e-mail que o remetente não tinha autorização prévia de forma expressa, mas, mesmo assim, fica mandando ofertas, e para não receber mais esses e-mails há a necessidade de descadastrar, sendo o “opt-out”. A CPPA se preocupou em garantir que para a venda de informações pessoais do adolescente se tenha o aceite do próprio indivíduo a partir dos 13 anos. Pode parecer uma previsão sem propósito, mas busca garantir que a venda não ocorra sem a autorização.

 

Autores:

 

CLAUDIA MARIA CARVALHO DO AMARAL VIEIRA

Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação da Professora Doutora Josiane Rose Petry Veronese. Pesquisadora dos Núcleos de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – NEJUSCA e de Pesquisa Direito e Fraternidade do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora da Universidade São Judas Tadeu em São Paulo. Advogada em São Paulo.

 

LUIZ GUSTAVO SERAFIM NOVELI ARAUJO

Bacharelando em Direito na Universidade São Judas Tadeu em São Paulo. Assistente Jurídico na Tokio Marine Seguradora. Assistente da Professora Claudia Maria Carvalho do Amaral Vieira na Universidade São Judas Tadeu em São Paulo.